Por melhor que viesse a ultrapassar tudo o que estava a acontecer, sabia que tudo estava prestes a mudar da noite para o dia. Achava que já sabia qual seria o impacto que iria causar em mim enquanto pessoa. Mas a expressão "por melhor que viesse a ultrapassar" não tinha jeito de ser. Não há "melhor maneira" e "ultrapassar" é algo muito vago. Ficam as memórias.
Memórias.
A avó era tudo o que ainda restava das boas memórias de infância, das felizes, das realmente felizes. Era o único motivo válido para ainda querer fazer daquela casa a minha morada. A mesma casa que à tão pouco tempo atrás tinha calor, era aconchegante por ti. O cheiro das coisas, da madeira, do ar ainda era o mesmo. Mas faltavas tu.
Por ali a vida tinha acabado. Já não havia pombos nem passarinhos ou plantas bem cuidadas. O canário amarelo já não vivia na gaiola na janela da cozinha, para te responder carinhosamente quando lhe atiravas beijos. Lembro-me da maneira como expressavas o teu amor por ele e como pedias desculpa a Deus por o manteres numa gaiola.
Por vezes, mesmo já passado algum tempo, ainda dava por mim com a ideia de que te ia encontrar sentada à mesa da cozinha, com 2 chávenas de café com leite, uma delas à minha espera, ou sentada na bordinha da cama com um terço na mão, a rezar para dentro, por todos. Menos por ti. Desconfio que muitos pelos quais ela rezava nem se lembravam dela tanto assim. Esses mesmos que agora, no fim das contas, te tentam compensar com flores e orações.
Mas tu já não estás. E não vais estar mais.
E eu, sem sabe-lo, sabia.
E isso então era morrer.
Perder a avó foi bem mais que um murro no estômago. Na verdade, a morte sempre esteve à espreita desde que me lembro de mim, para lá do meu nascimento. A avó partilhava o seu corpo com aquele maldito cancro à mais de 30 anos. Conhecia-lhe os medicamentos que tomava religiosamente todos os dias, a todas as refeições. 11 ao pequeno-almoço. Só que, apesar do tempo ter ido passando e eu indo crescer, ainda vivia naquela ilusão de que as coisas eram "normais" assim, a avó ia ficar ali do meu lado para sempre, como se fosse imortal. Afinal de contas, eu já a tinha visto curvar a barreira dos 80, sempre com a mesma carinha, com aquele ar tão fresquinho que ela sempre negava .
E ria comigo. Fazia-me rir. E rezava.
A avó tinha sempre uma solução, uma palavra de conforto, um conselho, um miminho. lembro-me de, em pequena, chegar da escola e sempre lhe dizer que achava que tinha apanhado piolhos. Ela já conhecia a minha manha, sabia que eu só queria que ela me desse miminhos no cabelo. Era um bocado impossível apanhar piolhos dia sim, dia não. Lá se sentava ao meu lado, com a minha cabeça no seu colo, a procurar os piolhos que sabia não existir.
A minha avó (e o meu avô, mas isso é para outro título) morava no rés-de-chão e nós no primeiro andar. Não me lembro de uma única vez que tenha vindo da escola e ter subido a escada para minha casa sem antes entrar na dela primeiro.
Por falar em escola...
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